Mark Tansey Monte Sainte Victoire

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

FALEM OS PROJETOS

Falem os projetos, a crítica é uma circunstância

“A crítica moderna filia-se à subjetividade romântica e todas as suas oposições. Uma delas é o projeto moderno da arquitetura com seu tema coletivo e supra-individual. O pós-moderno nos coloca o paradoxo de exacerbar o individualismo e rejeitar a crítica da subjetividade – finalmente a obra pode ser lida como uma operação sem sujeito. Se o drama moderno foi tentar o desenho do coletivo, a tragédia pós-moderna é enfrentar o enigma do indivíduo sem subjetividade. Já é uma história. Melhor deixar os projetos falarem”.

Aceitemos como exercício que, no limite, a arquitetura está impossibilitada hoje de e conformar as regras universais ou mesmo coletivas, e que o projeto estaria, portanto inteiramente administrado por uma sensibilidade individual.
A afirmação “gosto porque gosto, é minha sensibilidade” é verdadeira e deve ser levada em consideração. Quanto mais o individual se afirma a partir do gosto – educado, é claro, pela informação e erudição -, tanto mais defende o projeto como um produto qualificado por um conjunto de referências. Se tal é a qualidade da obra, a sensibilidade artística se descreve como pura recepção. Nesse caso, a ação criativa só pode proceder analiticamente, ela seria essencialmente compositiva: a escolha das referências, sua redução a “elementos” e sua organização em procedimentos compositivos. E já que regras universais agridem a liberdade cultural e “compor” é sempre “ordenar”, uma lei genérica particular é um contra-senso. Sem a força da tradição, as regras compositivas são apenas convenções passíveis de variação e comentário, novamente referências para a criatividade ordenadora, no exercício erudito da convenção.
O gosto mais individual é assim o mais convencional. Cabe a critica que compartilha dessa sensibilidade compositiva a descrição elegante de todas as operações. O individualismo sincero afirmado pelo gosto se reconhece, inteligentemente, como conservador. E se há uma qualidade a ser admirada e respeitada nos conservadores é o seu realismo. É mais corajoso que os historicismos disciplinares que, sa­bendo-se convencionais, buscam na tradição clássica ou modernista uma origem menos arbitrária ou mais objetiva. Almejam, no fundo, uma inefável transcendência. Nisso estão ainda muito próximos da arquitetura moderna em seu anseio coletivo. Embora em oposição, ambos os projetos defendem a autonomia dos procedimentos como um valor permanente além e acima da contingência. Uma disciplina e uma técnica: compositivos e construtivos - mas aqui irredutíveis entre si. Muito além da crítica sociológica que se fez ao moderno, procurando no contexto ou no vernáculo - variantes do historicismo - uma justificativa que atenuasse a abstração técnica, é preciso ver que a disciplina enfraquece seu próprio conceito quando toma o modernismo heróico corno uma referência. Perde a aura clássica da tradição arriscando ser mais contingente do que gostaria, presa fácil do gosto arbitrário do qual tentou escapar.
São modernos os críticos mais diretos: o raciocínio construtivo é um todo que impede a análise tipológica de elementos isolados. A estrutura é uma equação espacial e sua evidência é da ordem da percepção, ou da mensuração, independe da história para seu entendimento. Basta operala. Separar de um partido estrutural uma solução interessante é ver no detalhe um ornamento. Todo comentário desatualiza - um referente é já um passado. A percepção moderna da técnica se quer irredutível à linguagem. E, se não o for, perde sua consistência como tradição moderna, e, nesse caso, a disciplina também. Por isso a primeira grande critica ao moderno saiu em busca do que está fora do projeto: a participação, a técnica artesanal, a cultura popular, outras tantas referências justificadas pelo compromisso ideológico. Estaríamos aqui distante do campo do gosto. Talvez.
A questão é como se forma um sistema de referências pertinente. O que a pop art demonstrou é sua completa ausência no mundo da mídia - no nosso mundo. A crueldade pop aponta o referente pelo que é, um atual sem atrás, do Parthenon à lata de sopa. A informação erudita nada conta na ordem da imagem, nela as variações se fazem na série industrial, seus contracomentários reforçam o hábito dos objetos pela banalidade de seus materiais mas anulam o sentido cotidiano pelos deslocamentos inusitados de escala, torna-os unidades discretas numa estranha série de efeitos sem causa.
Ao contrário da tensão explosiva da imagem pop com sua fria ironia, o procedimento compositivo torna os elementos necessariamente comensuráveis. O problema é totalizar numa unidade o que escapa à mensuração - Roma e Las Vegas. A estratégia pop de R. Venturi produz uma equivalência entre elementos dispares confundindo a escala numa percepção ambígua - como um outdoor. Bem-humorados, seus projetos resultam num todo sem tensão, perfeitamente convencio­nal, sem individuação. Ou, no vocabulário arquitetônico, sem caráter. Imagem que descarta qual­quer estetização ou aristocratismo do gosto. É um populista, um liberal conservador. E inteligente. Sua posição referenda democraticamente a dissolu­ção das noções de “alta cultura” e “baixa cultura” operada, na prática, pela mídia; e aceita que a cultura popular é hoje, essencialmente, middle class, isto é, mercado. O que é saudável em Venturi é seu antimoralismo. E se crítica tem ainda algo a ver com consciência, é muito difícil afirmar que somos inconscientes dominados pela mídia. O humor publicitário sabe exatamente que o con­sumidor tem humor sobre si mesmo. E o jornalismo de moda é a performance mais aproximada da crítica de mercado. Surpreende a convicção com que justifica a tendência em pauta sem esconder o caráter efêmero da desconsideração do que foi e do que proximamente será. Não há valores escondidos. A escatologia do mercado é o seguinte: está tudo à vista. E essa é a patologia pós-moderna. Mas, como disse um antiquado crítico de arte (C. Greenberg), não se pode ser contra ou a favor de uma tendência, apenas desta ou daquela obra.
Desde Venturi e Rossi, a referência dominante para o esquema compositivo será, por muito tempo, uma simbiose entre a tradição disciplinar e os agenciamentos pop. O Stirling de Stut­tgart talvez seja a compreensão mais brilhante da questão. O museu não é um objeto adornado por uma atabalhoada colagem de referências. É uma montagem, uma seqüência quase fílmica, que justapõe o classicismo, o arts and crafts, a técnica moderna e a palheta lustrosa da pop. Um percurso inglês. Sabe, de casa, o que significa o common sense e a convenção - e gosto, aqui, significa controle sobre seu próprio trabalho. No fio desse percurso estão as referências tectônicas, mais do que tipológicas, que conformam a tradição construtiva inglesa muito antes do moderno. São as mesmas vertentes mais técnicas da atual arquitetura da ilha. Podem fazer do raciocínio estrutural uma composição onde não falta a escala pop e a vocação ornamental dos componentes. Ou seja, uma técnica figurativa, tão própria do art-nouveau como do Archigram. Já o Mario Botta das últimas obras é a pior surpresa. Desagradavelmente triste a monumentalização pop de um fragmento clássico, composto solenemente numa escala egípcia. Fez da pop uma disciplina e da tradição um kitsch. Mas é um sintoma da força associativa do gosto, psicologia perfeitamente compreendida pela mídia - a sua melhor crítica.
A síndrome pós-moderna não é e referente. Todo projeto tem, obviamente, referências. Mas a atual inflação é um sintoma do drama do autor. O esquema compositivo parece decorrer hoje da situação de um sujeito, de um indivíduo ou do que chamemos de X, que se anula consciente ou inconscientemente, descartando a idéia forte do projeto como proposição. As soluções técnicas e programáticas, os comentários formais, se modestos e corretos, supõem a estabilidade de um código operativo e as certezas anônimas do ofício, ou do escritório. À crítica cabe o balanço adequado das referências sem julgar intenções. Mas no momento está em xeque qualquer código. Por isso, deixa-se de lado, cuidadosamente afastado, o sentido da ação de compor. Sobra uma ansiedade, difusa e perplexa, de uma profissão que qualifica, em última instância, o próprio autor.
Enfrentar a própria composição destituindo o projeto de todas as referências, inclusive as da técnica e do programa, tem sido o percurso de Eisenman, na busca angustiante da pura geração da forma sem sujeito - sem qualidades. Em vez do “elemento”, Eisenman parte da mais forte figura da interioridade - o cubo. É um longo percurso desde o formalismo lingüístico da decomposição, passando pela psicanálise até a computação e a ciência. Eisenman é respeitável porque enfrenta, na pratica do projeto, três fontes românticas da modernidade: a autoridade do sujeito, a vontade do artista e a objetividade da ciência. Não é pouco para quem o considera um aborrecido pós-moderno. Pode-se lembrar que, há vinte e tantos anos, Sérgio Ferro enfrentava questões semelhantes. Ambos são da mesma geração - Foucault, Lacan, o estruturalismo. Para os que defendem uma alta dose de referências para escapar, exatamente, da subjetividade, o percurso de Eisenman é a crítica da composição enquanto prática pacificadora. O que deixa entrever, sob a negação incessante do sujeito, ainda a vontade afirmativa da construção.
Esse é o tema de Koolhaas, o mais instigante olhar europeu sobre a América - o espaço moderno por excelência. Retorna o tema da cidade e da técnica, aponta o impulso de seu próprio projeto para a escala gigantesca dos empreendimentos - fenômeno recente na Europa. Enfrenta um dilema: os requerimentos funcionais encontram-se autonomizados e privatizandos: dificilmente se pode considerá-los ainda elementos de uma totalidade: as partes paradoxalmente autônomas recusam qualquer esquema compositivo, as distâncias entre o interior e o exterior impedem a continuidade espacial, o impacto da escala dissolve toda velocidade de qualificação. Suas formas simples ressoam uma unidade moderna mas dispostas em escalas sem relação entre si incomensuráveis. O que flutua internamente são as partes que mantêm conexões mínimas entre si, não o todo, Para Koolhaas, hoje é quase impossível controlar a construção, a cidade, enfim. Resta para o projeto dominar o vazio - como um não-resíduo - que nomeia de espaço público. Bela metáfora da arquitetura, bela imagem do projeto, bela questão para o Brasil. O problema de Koolhaas é o dilema de todos nós.
Daniel Libeskind, o mais poético entre os arquitetos, medita - do único modo que pode fazê-lo, um projeto - sobre a instabilidade da civilização ocidental, o drama da exclusão, o Ocidente e o Oriente no muro de Berlim. Sobre um texto ininterrupto uma forma quer se alçar. Ou se apoiar, não se sabe. Envolto numa página de inscrições, sujeito a interpretações infinitas, seu movimento almeja o espaço, como todo movimento. Não é ainda uma forma, apenas uma indicação, o traço que oscila ente o logos da techne e o verbo bíblico, as raízes greco-judaicas do Ocidente. Sobre o texto está a foto de Mies van der Rohe e o compasso - o mais técnico entre os modernos, sua medida mais silenciosa.
Mas estamos aqui, país de construtores, em busca de uma medida e de sua infinita interpretação - no movimento em direção a uma forma coletiva e sempre aberta, um livro... O que seria uma critica senão compreender que construir não é uma visão de mundo que se pode modificar, é uma forma de existência, uma vontade silenciosa, uma vida. Não se pede à vida que se justifique. Vive-se. A coexistência anônima, a solidariedade pública são os limites de sua vontade. Uma forma de vida, porque é uma forma, vive de seus limites, das marcas de seus embates. A critica não é uma teoria nem o tribunal cético das intenções. É uma ação, uma prática. Dizer que a história, a filosofia, a arquitetura são críticas é um truísmo. A crítica é o desejo de uma situação, de um engajamento possível, como tudo. Não há uma posição crítica em abstrato, ela é também um projeto, não uma profissão. Compartilha o cotidiano de problemas comuns; depende do momento, de uma conversa - entre indivíduos, entre projetos. A crítica é apenas a circunstância.

Sophia Silva Telles
Crítica de arquitetura e professora
Adjunta de história e teoria na
FAU/PUCCAMP