Mark Tansey Monte Sainte Victoire

domingo, 23 de outubro de 2011

Sublime: a Iingua dos anjos, a fala dos homens

texto de Alexandre Fiorotti, Christiane Stelzer, Patricia Stelzer

“Ainda que eu falasse a lingua dos homens,
Que falasse a língua dos anjos
Sem amor eu nada seria
O amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
E um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer

É um não querer, mas que bem querer

É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
E cuidar que se ganha em se perder

E um estar-se preso por vontade

É servir a quem vence, o vencedor
E um ter com quem nos mata, lealdade
Tão contrário a si é mesmo o amor...
(Camões)

De acordo com o filósofo alemão Imannuel Kant (1724 - 1804), em seu livro Crítica da Faculdade do Juízo, sublime é o que e absolutamente grande, acima de toda comparação. E o que apraz imediatamente por sua resistência contra o interesse dos sentidos. Trata-se de uma grandeza que é igual simplesmente a si mesma.  Disso segue-se portanto que o sublime não é objeto e sim a disposição do espírito, uma faculdade de ânimo que ultrapassa os padrões de medida dos sentidos.
Kant divide o sublime em duas categorias:  aquele em comparação com o qual tudo o mais é pequeno e o dinâmico sublime na natureza que é uma espécie de contentamento resultante da cessação de uma situação de perigo”, causado por uma impotência física diante da natureza. Rochedos audazes, mares revoltos, a fúria de um vulcão, remete-nos uma mistura de admiração e medo.
A tentativa de dominar a natureza através da obra de arte aparece na Europa, no romantismo, entre o século XVII e XIX, com suas paisagens que amedrontam e repelem o contato com os homens. Mas, suscitam a força interior, na medida que as preocupações comuns se tomam pequenas diante da grandeza das tormentas, tempestades, da desolação do deserto ou da imensidão do mar.  O sublime, segundo Kant, nos toma sensíveis a estas situações.
Na obra do pintor romântico alemão Caspar David Friedrich (1774 - 1840). a natureza aparece como algo que se apodera da alma humana, tomando as figuras impotentes e dominadas num misto de medo e contemplação. A idéia do sublime se configura então através de paisagens grandiosas e místicas.
Caspar David Friedrich – Monk by the sea, 1809 
Das Eismeer / Die verunglückte Nordpolexpedition, Die verunglückte Hoffnung (1823 - 1824)
[Polar Sea / The Destroyed Hope)]

O elemento central nos quadros de Friedrich é a contemplação estética da natureza. Ele a relaciona com uma nova linguagem pictórica. Seus personagens solitários tem como principal característica a “distância” em relação ao mundo, uma distância reflexiva.
A exigência do observador e sua experiência para a realização do sublime, mostram a dicotomia entre o belo e o sublime. Pois o sublime se restringe à imaginação de quem observa a obra de arte ou uma paisagem.
Tanto o belo quanto o sublime são disposições da faculdade de sentir, mas no prazer do belo, que é a expressão sensível de juízo, o que conta é o efeito da representação sobre o sujeito.  Re-presentação é a síntese do que se apresenta e é análogo ao conceito de forma, reflexão de objeto singular na imaginação. Desenho e composição são precisamente manifestações de reflexão formal, criadas pelo artista, designer ou natureza. Assim, na beleza estética a percepção da forma se dá em harmonia com objeto, enquanto no sublime nada vem do objeto mas somente do ânimo que é mais individual, de modo que não se pode iludir facilmente sobre a adesão dos outros diz Kant.
No sublime há uma separação entre o espectador e a cena, criando um abismo entre ambos. A harmonia entre eles não se realiza O homem moderno não pode penetrar no recinto da natureza pois ele a coage e a destrói como sujeito raciona], como identidade subjetiva da dominação. Daí resulta a demarcação e a separação de natureza a uma distância enorme que a toma inacessível.
A tarefa do pintor não se finda na exposição fiel do ar, da água, dos rochedos e árvores, mas em sentimentos, Reconhecer o espírito da natureza, penetrar nele, assumi-lo, eis a tarefa da obra de arte.
Neste final de século, no atual estágio de desenvolvimento humano, das novas tecnologias que revolucionam a sociedade, a arte contemporânea busca uma possibilidade de expandir seus horizontes, ultrapassando os padrões de gosto e de beleza. O sublime se mostra então através da tentativa do artista de demonstrar a irracionalidade das ações humanas. Agora não mais a natureza é a principal fonte de inspiração e medo e sim o próprio homem e sua história, povoada de mitos e tragédias. Outra fonte do sublime na arte contemporânea é a equiparação de valor entre artista, arte e receptor, o sentido e sentimento da obra se dá mais nos outros....
Anselm Kiefer (1946), um dos maiores pintores da atualidade, nos evoca o sublime na arte contemporânea. Suas obras revelam as ameaças que pairam sobre nosso tempo, a insatisfação com o declínio.
Em suas paisagens aparecem terras queimadas, apocalípticas, transformadas pelo homem, gerador de conflitos e dos mitos de nossa época. Para ele, o mito é uma preocupação em constituir o sentido e a realidade através do contar histórias em imagens, usando o lado humorístico e esquisito de sua imaginação para diminuir ou relativizar seu efeito pomposo e megalomaníaco.
Kiefer explora a tensão entre o banal e o sublime, que é tão central em seu trabalho, quanto a dialética Baudelairiana do eterno e do transitório é para o modernismo. Kiefer reduz a distância entre o sublime e o ridículo. A obra de Kiefer sem dúvida pede um comprometimento renovado com o belo. Isso pode ser visto como sua força, mais que como sua fraqueza. E uma força, porque ele não inverte simplesmente a hierarquia dos termos, privilegiando o belo. Sua prática estética ilude a dicotomia tradicional abrindo-a para um terceiro termo oculto, centrado na banalidade, no clichê, no trivial. Com esta constelação triangular, Kiefer desestabiliza o discurso do sublime tanto visualmente quanto conceitualmente, e sugere, embora de forma indireta, que o sublime não representável ( como a abstração depois do modernismo) pode ser tão banal quanto os produtos mais banais da indústria cultural. A beleza, por outro lado, pode se confundir com o sublime, desenhando aquilo que o sublime sempre excluiu: a banalidade efêmera, a repetição simples e sem dramas, o registro transitório do mundo.2
Os mitos degradados, o histórico usurpado pelo nazismo são configurados com materiais que se deterioram com o tempo ( a expectativa de durabilidade de suas obras é menos de 20 anos).
Les Reines de France, 1995. Emulsion, acrylic, sunflower seeds, photographs, woodcut, goldleaf, and cardboard on canvas, three panels, 18 feet 4 1/2 inches x 24 feet 2 1/2 inches (560.1 x 737.9 cm) overall. Solomon R. Guggenheim Museum, New York,Anonymous Gift  97.4558. © Anselm Kiefer

“Lilith am Roten Meer” (“Lilith no Mar Vermelho”), obra de Alselm Kiefer no acerva da Hamburger Bahnhof, em Berlim
Lilith, 1990. Oil, emulsion, shellac, charcoal and ash on canvas, with clay, women's hair, strips of lead and poppy seeds, 380 x 560 cm, Hans Grothe, Bremen.

Em sua obra Interior, Kiefer retrata um monumento nazista, invoca também a tradição do neoclassicismo alemão, vulgarizada na arquitetura nazista. A tragédia histórica, pela qual passou a Alemanha aparece de forma simbólica, uma recordação sinistra e moderna de Hitler.

Anselm Kiefer, Innenraum (Interior space), 1981, oil, acrylic, shellac, and emulsion on canvas
 
Deutschlands Geisteshelden (Germany’s Spiritual Heroes), 1973, Oil and charcoal on burlap, mounted on canvas, 120 7/8 x 268 1/2 in. (307 x 682 cm)The Broad Art Foundation, Santa Monica, © 2009 Anselm Kiefer, Photo courtesy The Broad Art Foundation, photo by Douglas M. Parker Studio, Los Angeles

NOTAS:
1-  1- Subirats, Eduardo — Paisagens da solidão, Livraria Duas Cidades, 1986,
2-  2- Huissen, Andreas — Memórias do modernismo, Editora UFRJ, 1996.

BIBLIOGRAFIA
Kant, Imanuel. Critica da faculdade do juízo. Forense, 1996.
Klauss, Honnef. Arte Contemporânea, Editora Tachen, 1988.
Duarte., Rodrigo (org.). O belo, o sublime e Kant, Editora UFMG, 1998.
Revista Bravo. Anselm Kiefer — o imaginador moral, março/98 n.6 pp: 34-39.


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